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O mundo no bolso: a fermentação como arte, cultura e conexão global

por Inês Neto dos Santos

Da massa-mãe ao iogurte: uma jornada global de fermentação criativa

A fermentação rodeia-nos a todo o momento. Seria até mais correto dizer que toda a nossa existência é inseparável da fermentação, desde os inícios da vida na terra. Fermentar é um processo de transformação ao nível microscópico, que se desenrola, em fervor subtil mas poderoso, num variado leque de contextos: naquilo que bebemos e comemos, mas também debaixo do solo, dentro do nosso sistema digestivo e à superfície da nossa pele. Uma dança de microrganismos em loop infinito, contínua desde os primórdios do tempo. Um processo que, quando observado de perto, nos demonstra as infinitas possibilidades para a vida em simbiose.

Assim, podemos afirmar que a fermentação viaja connosco para onde quer que vamos. Mas, poderemos transportá-la no nosso bolso?

No início da pandemia da Covid-19, em Março de 2020, uni-me a um movimento iniciado pela artista Lexie Smith, que rapidamente se transformou num grupo de militantes da massa-mãe. Seguindo as indicações de Lexie, sequei massa-mãe ao sol, que depois dividi por pequenos envelopes e enviei para amigos e desconhecidos por toda a Europa. Da noite para o dia, os pedidos multiplicaram-se e, de repente, tinha centenas de moradas para onde enviar estes pequenos pacotes de vida microbiana adormecida (Lexie escreveu de forma brilhante sobre este fenómeno no seu texto The Bread Rise). Semanas mais tarde, fotografias de massas-mãe reanimadas, borbulhantes em frascos, chegaram à minha caixa de email.

Nesse mesmo ano, meses mais tarde, participei numa sessão de leitura com a antropóloga e escritora Mercedes Villalba, que leu e partilhou a sua publicação Manifesto Fervente enquanto, em conjunto, preparávamos iogurte. Neste texto, Mercedes incita-nos a fermentar de forma física e metafórica, e convida-nos a cultivar o futuro, a imaginar outros modos de produção e relação, a desarticular e desmanchar a lógica capitalista. Falámos das diferenças entre os iogurtes industriais e caseiros – a forma colaborativa como as culturas de bactérias dos iogurtes artesanais se perpetuam ad infinitum, devido à diversidade microbiológica tão própria da fermentação natural (uma maior diversidade de tipos de bactérias significa uma maior protecção contra outros organismos menos desejados, uma maior possibilidade de continuação da vida através de um sistema simbiótico). Mercedes falou-nos destas culturas artesanais – a “flor” do iogurte -, passadas de geração em geração, entre amigos e desconhecidos, e muitas vezes transportadas em forma seca. Um pouco de iogurte é espalhado num pano, que se deixa secar, e fica pronto a ser transportado, dobrado, dentro do bolso de alguém. Chegando ao seu destino, o pano é embebido em leite morno, o iogurte seco integra-se no leite e a cultura adormecida volta à sua atividade, prosseguindo o seu processo de fermentação.

A massa-mãe desidratada, enviada a tantas mãos pelo mundo fora, e o iogurte transportado em panos encontraram-se no meu pensamento. Revisitei A Arte da Fermentação, de Sandor Katz, para ler a história de um emigrante finlandês, que viaja para os Estados Unidos, levando consigo o seu bem mais precioso: viili (um tipo de iogurte tradicional da Finlândia) seco, espalhado num pano, dobrado e escondido por entre roupas.

É inevitável concluir que a fermentação desdobra “cultura” em vários significados: bacteriana, social, artística. Atravessar fronteiras com um destes panos fermentados é viajar com o mundo inteiro no bolso. É levar connosco a possibilidade de conforto, sustento e cuidado, infinitamente multiplicáveis. Um gesto de resiliência e esperança num sistema simbiótico, colaborativo, interligado – guardado num pano que passaria por “sujo” a quaisquer olhos mais desatentos.

Inês Neto dos Santos

Artista multidisciplinar interessada em explorar a conexão entre culturas através da fermentação

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