Saramago e o êxodo: um encontro necessário com o desconhecido interno e externo
Tenho pensado no movimento de regresso a lugares desconhecidos. Ao desconhecido que é a Ilha, e ao desconhecido que somos nós mesmos.
Poucas pessoas fora da ilha têm noção de um fenómeno que todos nós, dentro dela experienciamos: o êxodo. A partida é necessária. Já dizia Saramago (faria em breve 100 anos esse homem sábio – também lhe roubei o título, espero que me perdoe): que “é preciso sair da ilha para ver a ilha”.
A maioria de nós parte. Numa idade estranha, a jovem adultez. Aquela idade em que somos todos um pouco parvos e impressionáveis – um mal necessário – porque sentimos a ilha pequena demais para o corpo que cresceu, porque o mundo do trabalho é competitivo, porque as melhores faculdades ficam longe, porque é urgente crescer. Da saída pouco se fala, desses dias sem mar, desses anos em que o aeroporto se torna rotina, das despedidas, da vida em lugares diferentes e a dois tempos: o da ilha e o fora dela. Do regresso ainda menos se fala. Durante os anos longe a ilha passa a ser mística. Passa a ser a Ilha inventada. O lugar onde reside a nossa infância: os dias leves da juventude sem responsabilidades nem impostos e as memórias de dias azuis e verdes infinitos, que sabem a maracujá e a água salgada.
O regresso implica a quebra deste encanto. É uma coisa boa, quebrar a magia, deixar cair o pano e dissipar os fumos. É quando vemos com clareza. O regresso foi, em retrospectiva, mais chocante do que a partida. Depois de algum tempo a viver na capital, a dimensão Madeira exigiu um enorme ajuste. Quem parte não volta igual, devorou mundo, percorreu quil(h)ómetros e conheceu pessoas, mudou.
E não deveria ser surpresa descobrir que a ilha permanece igual. Afinal o tempo nas Ilhas mede-se de forma muito mais lenta do que o das pessoas. Dá-se no regresso, o choque da realidade: os atrasos nos correios, as taxas alfandegárias elevadíssimas, os padrões de conservadorismo, as mentalidades pequenas, o sexismo, o compadrio, as frutas mais caras no supermercado, a política problemática, até o literal elevado preço para sair da ilha: tudo coisas que poucos de nós conhecíamos antes da saída. Éramos jovens e estúpidos, não sabíamos melhor. Regressamos adultos insensatos,mas vemos agora com clareza.
À vinda, surge também o imperativo de encontrar também a nossa tribo. Tive sorte. Cheguei à Madeira numa fase de intensa expansão cultural. Sentia-se no ar génese de um movimento que ainda perdura: o dos que fazem. Num lugar pequeno, os que causam ondas normalmente atraem-se mutuamente, numa tentativa de proteger a preciosidade que é encontrar semelhantes num ambiente árido. Com alguma timidez e sem defesas, admitimos que precisamos uns dos outros, porque isto de regressar a um lugar inventado tem muito que se lhe diga.
Hoje considero-me parte de uma comunidade importante na Ilha. Somos agentes culturais, actores, músicos, padeiros e cozinheiros, agricultores e cineastas, fotógrafos, arquitetos e escultores, cervejeiros, produtores de vinho, educadores, artistas, mães, pais e sonhadores, que numa teimosia aguerrida acreditamos na ilha que de encantada tem pouco, mas de encantador tem muito. Para nós imperfeita casa, onde muitos passam férias, é um lugar vibrante, cheio de energia e potencial, merecedor de todo o esforço para que se preserve a sua identidade, enquanto por frestas se deixa entrar o mundo, fazendo-o melhor. Uma ilha inventada, que no seu melhor, tem ainda dias verdes e azuis que sabem a mar e a maracujá.
Um especial obrigada ao Nuno Gonçalves @look.its.a.frame pelas incríveis fotos que cedeu para ilustrar este artigo.